domingo, 17 de outubro de 2010

Lar Desfeito

(Luis Fernando Veríssimo)

José e Maria estavam casados há 20 anos e eram muito felizes um com o outro. Tão felizes que um dia, na mesa, a filha mais velha reclamou:

— Vocês nunca brigam?

José e Maria se entreolharam. José respondeu:

— Não, minha filha. Sua mãe e eu não brigamos.

— Nunca brigaram? — quis saber Vítor, o filho do meio.

— Claro que já brigamos. Mas sempre fizemos as pazes.

— Na verdade, brigas, mesmo, nunca tivemos. Desentendimentos, como todo mundo. Mas sempre nos demos muito bem...

— Coisa mais chata — disse Venancinho, o menor.

Vera, a filha mais velha, tinha uma amiga, Nora, que a deixava fascinada com suas histórias de casa. Os pais de Nora viviam brigando. Era um drama. Nora contava tudo para Vera. Às vezes chorava. Vera consolava a amiga. Mas no fundo tinha uma certa inveja. Nora era infeliz. Devia ser bacana ser infeliz assim. O sonho de Vera era ter um problema em casa para poder ser revoltada como Nora. Ter olheiras como Nora.

Vítor, o filho do meio, freqüentava muito a casa de Sérgio, seu melhor amigo. Os pais de Sérgio estavam separados. O pai de Sérgio tinha um dia certo para sair com ele. Domingo. Iam ao parque de diversões, ao cinema, ao futebol. O pai de Sérgio namorava uma moça do teatro. E a mãe de Sérgio recebia visitas de um senhor muito camarada que sempre trazia presentes para Sérgio.

Venancinho, o filho menor, também tinha amigos com problemas em casa. A mãe do Haroldo, por exemplo, tinha se divorciado do pai do Haroldo e casado com um cara divorciado. O padrasto de Haroldo tinha uma filha de 11 anos que podia tocar o Danúbio azul espremendo uma das mãos na axila, o que deixava a mãe do Haroldo louca. A mãe do Haroldo gritava muito com o marido.

Bacana.

— Eu não agüento mais esta situação — disse Vera, na mesa,

— Que situação, minha filha?

— Essa felicidade de vocês!

— Vocês deviam ter o cuidado de não fazer isso na nossa frente – disse Vítor.

— Mas nós não fazemos nada!

— Exatamente.

Venancinho batia com o talher na mesa e reivindicava:

— Briga. Briga. Briga.

José e Maria concordavam que aquilo não podia continuar. Precisavam pensar nas crianças. Antes de mais nada, nas crianças. Manteriam uma fachada de desacordo, ódio e desconfiança na frente deles, para esconder a harmonia. Não seria fácil. Inventariam coisas. Trocariam acusações fictícias e insultos.

Tudo para não traumatizar os filhos.

— Víbora, não! — gritou Maria, começando a erguer-se do seu lugar na mesa com a faca serrilhada na mão.

José também ergueu-se e empunhou a cadeira.

— Víbora, sim! Vem que eu te arrebento.

Maria avançou. Vera agarrou-se ao seu braço.

— Mamãe. Não!

Vítor segurou o pai. Venancinho, que estava de boca aberta e os olhos arregalados desde o começo da discussão — a pior até então —, achou melhor pular da cadeira e procurar um canto neutro da sala de jantar.

Depois daquela cena, nada mais havia a fazer. O casal teria que se separar. Os advogados cuidariam de tudo. Eles não podiam mais nem se enxergar.

Agora era Nora que consolava Vera. Os pais eram assim mesmo. Ela tinha experiência. A família era uma instituição podre. Sozinha, na frente do espelho, Vera imitava a boca de desdém de Nora.

— Podre. Tudo podre.

E esfregava os olhos, para que ficassem vermelhos. Ainda não tinha olheiras, mas elas viriam com o tempo. Ela seria amarga e agressiva. A pálida filha de um lar desfeito. Um pouco de pó-de-arroz talvez ajudasse.

Vítor e Venancinho saíam aos domingos com o pai. Uma vez foram ao Maracanã junto com Sérgio, o pai do Sérgio e a namorada do pai do Sérgio, a moça do teatro. O pai do Sérgio perguntou se José não gostaria de conhecer uma amiga da sua namorada. Assim poderiam fazer mais programas juntos. José disse que achava que não. Precisava de tempo para se acostumar com sua nova situação. Sabe como é.

Maria não tinha namorado. Mas no mínimo duas vezes por semana desaparecia de casa, depois voltava menos nervosa. Os filhos tinham certeza de que ela ia se encontrar com um homem.

— Eles desconfiam de alguma coisa? — perguntou José.

— Acho que não — respondeu Maria.

Estavam os dois no motel onde se encontravam, no mínimo duas vezes por semana, escondidos.

— Será que fizemos o certo?

— Acho que sim. As crianças agora não se sentem mais deslocadas no meio dos amigos. Fizemos o que tinha que ser feito.

— Será que algum dia vamos poder viver juntos outra vez?

— Quando as crianças saírem de casa. Aí então estaremos livres das convenções sociais. Não precisaremos mais manter as aparências.

Me beija.

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