domingo, 17 de outubro de 2010

Noite e dia

(Luis Fernando Veríssimo)

O Homem que Acorda Cedo e o Homem que Dorme Tarde se encontram numa parada de ônibus.
— Bom dia.
— Boa noite.
— O primeiro ônibus não demora.
— Você quer dizer o último ônibus.
— Parece que vai ser um dia bonito.
— É o fim de uma longa noite.
— Mas é o começo do dia.
— O fim.
— Olha o sol aparecendo.
— Olha a lua desaparecendo.
— Que energia, que ânimo para o trabalho!
— Que cansaço.
— O primeiro som que ouvi hoje foi o cantar dos passarinhos.
— O último que eu ouvi foi o trombonista fechando o instrumento na maleta.
— Ainda sinto na boca o gosto de, deixa ver: pasta de dente, suco de laranja bem frio; café com leite, pão novo e, espera aí, hm. . . Ah, aqui está: manteiga fresca.
— Cigarro mofado, uísque ruim e um filé que sentou mal.
— Pretendo ganhar duzentos cruzeiros hoje, com o suor do meu rosto.
— Gastei quinhentos, sem suar.
— Olha o cheiro dos jardins, da minha loção de barba, do sol queimando a cerração.
— O perfume barato que ela usava, álcool na gravata e respingo de vômito.
— Olha o sol na nossa cara!
— Olha o sol na minha cara, pô.
— Respire fundo.
— Deus me livre.
— Esperança e fé.
— Remorso e azia.
— Produção.
— Dissolução.
— Progresso.
— Lixo.
— Colegiais e trabalhadores.
— Prostitutas e vadios.
— Passarinhos.
— Cansaço.
— Jardins.
— Vômito.
— O sol.
— O fim.
— Olha o primeiro ônibus!
— O último, você quer dizer.
E os dois embarcam. No mesmo ônibus.

Nenhum comentário: